domingo, 22 de novembro de 2015

Aforismos. Mais algumas tentativas.

1. Algumas coisas esquecemos, outras teimam em ser lembradas. O problema é que na vida não escolhemos em que categorias elas vão ficar.

2. Sem qualquer medida, não fez o que era preciso. Só o impreciso.

3. Acreditava tanto na construção social da realidade que esqueceu de olhar para os lados ao atravessar a rua. Já não acredita tanto!

4. Teve uma vida límpida como água pura. Inodora, insípida e incolor. Morreu de tédio!

5. Pensar é como amar. Não há como explicar. Você aprende na prática. De vez em quando, dói.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

O que nós somos?

Esta pergunta me foi feita há vinte e quatro anos atrás. Veio de Paloma essa indagação que, a princípio, me assustou. Naqueles dias já praticávamos nossa conversação bilingue. Paloma e Fernanda falavam em inglês e eu respondia em português. As duas foram primeiramente alfabetizadas em inglês. Me indagou ela:
_ Daddy, what are we?
Paloma, então, se aproximava dos seis anos de idade e havíamos chegado de sua escola onde fora buscá-la. Estávamos na Universidade de Lancaster onde morávamos. Telma estava fazendo seu doutoramento nesta universidade. Eu fazia o meu na Universidade de Manchester. Fernanda, um ano mais nova, frequentava a mesma escola em Galgate, pequena vila ao sul da cidade. Buscá-las na escola era algo que fazia quando não estava em Manchester. Muitas vezes, ia de manhã para a Manchester Business School e voltava à noite. Mas, não precisava ir todos os dias.
Passado o susto, perguntei o que ela queria saber. Não era uma questão existencial, como eu temia. Era mais direta, mas não mais simples.
A escola que Fernanda e Paloma frequentavam recebia muitas crianças estrangeiras. Eram os filhos e filhas dos estudantes que vinham de outros países estudar na universidade. A escola era vinculada à igreja anglicana, mas tinha uma abordagem eclética nos estudos de religião já que recebia crianças cujos pais tinham as mais diversas crenças.
Paloma queria, simplesmente, saber qual era nossa religião. Ela tinha amigas anglicanas, muçulmanas, católicas, judias, protestantes e budistas. É provável que tenha sido questionada sobre o que éramos.
Mais aliviado, lá fui eu explicar a uma menina com pouco mais de cinco anos porque não tínhamos uma religião. Me lembro que disse algo assim:
_ Filha, sua mãe e eu não temos uma religião. Não acreditamos na existência de deus. Mas, quando você crescer, você poderá fazer sua escolha. Nós não podemos fazer essa escolha para você.
Não sei como Paloma lidou com isso na escola. Ela nunca mais tocou no assunto.
Para mim, ficou a esperança de que ela tenha aprendido naquela escola como é importante conhecer o diverso e respeitá-lo. Cada uma daquelas crianças era adorável apenas por ser criança. Não importava a crença religiosa de seus pais. Me lembro de um convívio harmonioso daquelas crianças que volta e meia estavam em nossa casa.
Quanto a mim, acho que ela e Fernanda descobriram, ao longo dos anos, que além de tentar responder a suas dúvidas, estou sempre torcendo por suas escolhas na vida. É para isso que servem os pais.
E, sem nenhuma surpresa, acabei me tornando professor. Respondedor de perguntas que respeita as escolhas de cada estudante. Simples assim.
Quanto ao que nós somos, creio que você tem uma resposta própria.

Diário de bordo

Cogito
Digito
Quase vomito.

Reflito
Aflito
Surge algum escrito.

Rumino
Ilumino
Continuo menino.

Penso
Senso
Na viagem, tenso.

Tento,
Atento
Versos invento

Aborrecimento
Engarrafamento
Na estrada, lamento.

Escureceu
Para espanto meu
Meu pé adormeceu.

Livro já li
Vou logo ali
Fazer xixi.

Fui...

Aforismos

A ficção é, para muitos, fonte da convicção.
Saiu da escola com olhos bem treinados. Mas, tão míopes!
Sem poesia não se imagina uma utopia. Sem utopia não há porque caprichar na caligrafia.
Às vezes corremos tanto que ao chegar esquecemos porque partimos.
Estava tão cheio de si e, ao mesmo tempo, tão vazio.
Fez um discurso tão sem nexo, que o côncavo virou convexo.

A guardiã da memória e o deus do tempo (Uma homenagem a minha mãe)

Em 17 de janeiro de 2008, Silvana Leão escreveu uma reportagem na Folha de Londrina. Nela, relatou o trabalho de registro da história familiar e da cidade onde meus irmãos e eu nascemos, Londrina, que minha mãe Kilda fez ao longo de mais de 40 anos. Silvana Leão, deu à reportagem o título "Kilda, uma guardiã da memória".
Nesta reportagem, a jornalista relata o trabalho que minha mãe teve de montar álbuns com registros jornalísticos e fotográficos de inúmeros momentos da vida de cada um dos filhos, de seus ancestrais e das famílias Prado e Gimenez. Foram dezenas de registros personalizados, em formato de biografias, e inúmeros álbuns com recortes de jornais. U m dos mais significativos foi o que fez sobre a história do Colégio Londrinense, do qual fez parte da primeira turma de ginásio. Neste colégio, meus irmãos e eu também fizemos nossa formação escolar nos antigos primário e ginásio.
Mas, o que Silvana Leão não podia imaginar é que, ao dar a uma simples mortal o título de guardiã da memória estava desafiando o deus do tempo, o velho Cronos. Este, aparentemente adormecido, ficou furioso ao ver a ousadia de uma mera humana querer usurpar suas funções. As notícias sobre a repercussão da reportagem chegaram rápido, levadas pelos ventos, a comando de Éolo. Cronos ficou furioso e, vingativo como todos os deuses, disse:
_ Essa atrevida não perde pro esperar! Não tenho pressa, mas um dia ela vai ver o que lhe está reservado.
Realmente, Cronos, assim como todos os deuses, é imortal, portanto não tem pressa, e impiedoso. Ficou aguardando o momento em que poderia agir. Esse dia demorou quase sete anos e meio. O que para nós mortais parece muito, para Cronos foi como um segundo.
Kilda, em agosto desse ano, adoeceu. Passou quase trinta dias em uma UTI hospitalar. Foi o momento para o vingativo deus do tempo preparar sua vingança. A cada dia na UTI, Kilda parecia perder sua memória. Quando finalmente conseguiu se restabelecer, parecia que havia esquecido tudo. A guardiã da memória havia perdido a sua memória?
Não! Cronos é um deus mais sofisticado. Esta vingança seria muito simples. Ele queria algo mais impactante: dar uma lição aos humanos:
_ Ninguém pode querer ser guardião ou guardiã da memória!
Vivia exclamando isso por todos os cantos do Olimpo.
Cronos foi ardiloso. Enquanto Kilda estava semiconsciente na UTI, ele fez o seu jogo de cartas. As memórias de Kilda, assim como as nossas, ficam guardadas em fichas que se parecem com cartas de baralho. Mas, nosso baralho mental tem muito mais que quatro naipes. São quase infinitos, pois há um naipe para cada tipo de emoção que vivenciamos. A cada experiência vivida, vamos acumulando cartas com o mesmo naipe em cantos distintos de nosso cérebro.
Cronos sempre soube disso. Poderoso, aproveitou-se do descuido de Kilda e embaralhou todas as cartas de seu cérebro. Quando ela saiu da UTI, já não tinha mais como saber os naipes corretos de cada vivência em seu 89 anos. Começou a misturar tudo!
Mas, Cronos foi tapeado!
Kilda, uma mulher precavida, ao ver o título que recebera naquele dia em 2008, lembrou-se de seus estudos da mitologia grega. Desde aquele dia, sabia que alguma coisa poderia lhe acontecer. Temia a ira de Cronos. Se preparou para ela.
Nesses sete anos e meio, sempre que podia, me contava muitas histórias. E, sempre as repetia. Muitas e muitas vezes me contou histórias que já tinha me narrado em outras ocasiões. Eu não entendia por que ela assim o fazia.
Mas, agora eu sei. Hoje, ela me contou algumas histórias, mas graças às artimanhas de Cronos, elas saíram de seus lábios totalmente embaralhadas.Fragmentos de vida, de diferentes momentos, misturados como se tivessem ocorridos ao mesmo tempo. Como se todos tivessem o mesmo naipe.
Eu, pacientemente fui separando os fragmentos e juntando aqueles que tinham os mesmos naipes. Era como se montasse alguns quebra-cabeças ao mesmo tempo! Os fragmentos, com seus naipes corretos, estão em minha memória.
Me dei conta do que minha mãe fizera. Ao longo dos últimos anos foi me preparando para continuar o embate com Cronos. Cronos, essa criação humana, pensa que é mais ardilosa do que nós humanos. Dona Kilda deu uma lição a ele. A criatura jamais é mais poderosa que aqueles que a criaram.

Duas Lágrimas

No ônibus a caminho de Londrina. É um parador! De Curitiba, já passou por Ponta Grossa, Imbaú e Ortigueira. Não sei qual será a próxima parada.
Minha leitura de bordo já concluí. No sistema de vídeo interno, um filme que já assisti. Sono já se foi após uma hora de viagem entre Ponta Grossa e Imbaú.
Em Ortigueira, ouço a conversa de um passageiro sentado em algum lugar mais ao fundo. Fala ao celular. Ao final, se despedindo, descubro quem está no outro lado:
_ Filha, dê um beijo em sua mãe. Diga que eu amo ela. Ela pode acreditar.
A frase de despedida me sugere um casal em crise. Dá sentido à primeira fala dele:
_ Em Imbaú o celular estava sem sinal. Aqui acabou de tocar. Vou tentar ver uma placa para saber onde estou.
_ Em Ortigueira. Alguém diz a ele.
Imagino que tenha sido cobrado por não atender o telefone antes. Deve ter sido a mulher, pois durante o diálogo houve troca de interlocutor. Imagino a cena. Mulher irritada passa o telefone para a filha:
_.Tô. Conversa com seu pai. Esse traste!
O tom de voz desse passageiro, cujo rosto não enxergo, desperta minha emoção. Esta se faz acompanhar da imaginação. Sinto tristeza na forma como disse as últimas palavras.
Enxergo uma lágrima correr pela face do pai. Do outro lado da linha - sei que celular não tem linha, mas a poesia exige essa frase - outra lágrima deixa sua marca em um rosto de menina. Uma porta bate com força. Se ouve um palavrão.

Primavera em Curitiba

Às vezes me irrita
De frio, até minha alma tirita
Preciso de uma birita.